O Semeador de Maçons: O Padrinho e o Futuro da Ordem

A função do padrinho, historicamente documentada nas Old Charges, vai além da mera formalidade: ele é o mentor ético e filosófico, responsável por acompanhar o crescimento moral e espiritual do novo maçom. Sua escolha e ação rigorosas são determinantes para a vitalidade da Ordem. O artigo denuncia a crise atual da Maçonaria, em que a escolha dos padrinhos muitas vezes carece de um exame aprofundado de conduta e preparo. Ressalta-se a urgência de restaurar a função do padrinho como a força criativa que garante a transmissão da Luz e a perpetuação dos princípios maçônicos, defendendo que a Maçonaria do futuro será moldada pelos padrinhos de hoje.
O Semeador de Maçons: O Padrinho e o Futuro da Ordem
Por Rui Samarcos Lora
A Maçonaria, fraternidade ancestral erguida sobre os alicerces da tradição iniciática e da construção moral, encontra na figura frequentemente subestimada do padrinho, ou propositor, o seu mais crucial artífice do amanhã. Enquanto os debates contemporâneos se concentram nos sintomas preocupantes, a evasão de irmãos, a aparente erosão da qualidade ritualística, a inconsistência na conduta e na ação fraterna, é no cerne da relação sagrada entre padrinho e afilhado que reside o diagnóstico e o remédio mais potente. Esta relação, longe de ser mero protocolo, é a encarnação viva e perene do arquétipo universal do mestre e discípulo, princípio vital para a transmissão fiel da Luz.
As raízes desta função mergulham profundamente no solo histórico da Ordem. Nas Old Charges, os veneráveis regulamentos das guildas operativas, já se inscrevia a responsabilidade indelével do membro experiente por garantir a idoneidade moral e profissional do candidato. Com a transição para a Maçonaria Especulativa, essa incumbência transcendeu o domínio material, assumindo uma dimensão filosófica e ética de imensa magnitude. O padrinho tornou-se o fiador não apenas da reputação da Loja, mas da própria integridade do caminho iniciático que se abre ao profano. Ele personifica o elo vital, o canal através do qual a sabedoria acumulada das eras flui para o neófito sedento de entendimento. Reduzir seu papel à mera proposição formal é um erro grave que mina os fundamentos. Ele é, antes de tudo, o guardião da tradição e o modelo vivo a ser emulado, o microcosmo da maçônaria capaz de reproduzir outras Lojas em sua descendência. Sua missão verdadeira começa após a iniciação: é ele quem acompanha o passo vacilante do Aprendiz pelos corredores simbólicos, iluminando as sombras com a tocha da experiência. É ele quem dá exemplo constante, não só dentro do templo, no rigor dos trabalhos, mas no mundo profano, na tessitura diária de uma vida reta e virtuosa, na aplicação concreta dos princípios que a Ordem professa. Portanto, ele inspira dentro e fora dos Templos. Geralmente o primeiro a ser visto e notado pelo neófito. Inspiração que motiva o desejo pela Luz antes mesmo de conhecer os princípios e fundamentos da Ordem. É ele quem, com a firmeza temperada pela fraternidade, corrige os desvios, relembrando os juramentos solenes perante o esquadro e o compasso. É ele quem conduz, não como um ditador, mas como um guia seguro através dos graus, interpretando alegorias, desvendando símbolos, e, acima de tudo, transmitindo o ethos maçônico – aquele espírito que os manuais sozinhos jamais conseguem capturar por completo.
Esta ligação mestre-discípulo não é efêmera; é duradoura e permanente. Muitas vezes esquecida ou terceirizada nos templos da modernidade. Enquanto o afiliado não atingir a plenitude do grau de Mestre Maçom, e frequentemente muito além, o padrinho permanece seu farol, sua "luz que o conduz". Isso não é dogmático, é natural, como em muitas ordens, como na própria Academia. O padrinho não é apenas proponente, ele é o mentor natural, razão pela qual não está instituído ou declarado, mas é em quem se confia a caminhada que começa fora da Ordem. Este vínculo, que pode ser considerado sagrado para quem entende a Maçonaria como algo além do ético e moral, comunitário e vivo, encontra ecos na estrutura formativa de outras ordens iniciáticas ao longo da história. Na Cavalaria medieval, o cavaleiro veterano (o "parrain") respondia pelo escudeiro, moldando-lhe o caráter e a destreza. Nas ordens monásticas, o mestre espiritual guiava o noviço na ascese e na contemplação. Como observou São Bernardo de Claraval, aquele que deve conduzir outros deve primeiro ser "uma fonte límpida, não um canal lamacento". Em todas essas tradições, a excelência do mestre determinava inexoravelmente a formação e o futuro do discípulo, refletindo-se diretamente na vitalidade e na reputação da instituição que ambos serviam.
Quando contemplamos a inquietante evasão maçônica, a sensação difusa de uma perda de qualidade nos trabalhos, o definhamento da participação ativa e uma certa fragilização na conduta e ação dos maçons, é imperativo voltar o olhar para a fonte geradora. A bela alegoria cabalística, "a semente está na árvore e a árvore na semente", oferece uma chave poderosa. O padrinho é o semeador e o jardineiro. Ele seleciona a semente (o candidato), planta-a no solo fértil (ou não) da Loja, e nutre seu crescimento. Se a árvore futura (o novo maçom) se revela frágil, estéril, ou sequer vinga, a responsabilidade primeira recai sobre os critérios de seleção e o zelo do jardineiro. É importante que cada maçom possa refletir sobre essa responsabilidade. Afinal, todo maçom é um potencial padrinho como toda semente é uma potencial árvore. A crise maçônica espelha, em grande medida, a banalização desta função sagrada. Em muitos quadrantes da Ordem, a escolha dos padrinhos carece do rigor imprescindível. Faltam, com frequência, um verdadeiro "exame de conduta" minucioso, o verdadeiro VITRIOL, e uma cobrança efetiva de qualificação para assumir tamanho encargo. O fato de ser um Mestre Maçom há alguns anos não constitui, por si só, credencial adequada. Ser padrinho exige ser, antes e acima de tudo, um bom maçom: íntegro de caráter, dedicado ao estudo e à prática, conhecedor profundo não apenas dos rituais, mas da filosofia, da história e dos símbolos que tecem a identidade maçônica, e, crucialmente, um exemplo vivo e coerente dos valores que a Ordem encerra. A pressa em aumentar quadros, a camaradagem superficial que sobrepõe laços pessoais ao mérito, ou a negligência no acompanhamento pós-iniciação, abandonando o neófito à sua própria sorte, são venenos que corroem a relação padrinho-afilhado, mestre-discípulo desde a raiz. A delegação formal da supervisão dos Aprendizes e Companheiros aos Vigilantes, embora estruturalmente necessária e válida, não exime o padrinho de sua responsabilidade pessoal, direta e inalienável. O Vigilante opera no plano coletivo e ritualístico; o padrinho é o vínculo íntimo, pessoal e permanente, o rosto humano da tradição para aquele que acaba de ingressar. Um papel não substitui o outro; são complementares e essenciais.
Assumir a missão de padrinho é abraçar uma parcela da responsabilidade cósmica da Ordem. É participar conscientemente do ato criativo de perpetuar a linhagem iniciática. Tal como o Grande Arquiteto do Universo infundiu ordem e propósito no caos primordial, ou como o ser humano, ao gerar e educar um filho, perpétua e molda a existência, o padrinho, ao propor e guiar um novo irmão, está a forjar um novo elo na corrente áurea da Tradição Maçônica. A responsabilidade é, portanto, imensa e solene. Uma semente mal escolhida, mal plantada ou mal cuidada compromete não apenas uma árvore isolada, mas todo o ecossistema simbólico da Loja e, por extensão, a saúde da Maçonaria Universal. A revitalização da Ordem, o resgate da excelência em seus trabalhos, o fortalecimento de sua ação transformadora no mundo e a reversão da evasão passam, inexoravelmente, pelo resgate consciente e vigoroso do verdadeiro significado e peso do papel do padrinho. É imperativo que Potências e Lojas instituam processos mais rigorosos e criteriosos para a qualificação, seleção e até avaliação contínua dos padrinhos, reconhecendo que esta função é o cerne vivo da transmissão iniciática, o mecanismo pelo qual o fogo sagrado se mantém aceso. É urgente que cada maçom, ao propor um neófito, pause e reflita com profunda seriedade: possui ele as condições morais, o conhecimento, a disponibilidade e, sobretudo, a vontade inquebrantável de assumir este ministério fraterno em sua plenitude? Será que serei tão bom padrinho quando quem aqui me trouxe?
Pois a Maçonaria que colheremos nas décadas vindouras é diretamente semeada pelos padrinhos que consagramos hoje. A árvore futura, em sua robustez e frondosidade, já está potencialmente contida na semente que agora é confiada às nossas mãos. Cabe-nos, como fiéis jardineiros desta tradição imemorial, garantir que cada semente seja não apenas viável, mas escolhida com sabedoria, plantada com amor e nutrida com o rigor e a dedicação que a Arte Real merece, destinando-se cada uma a tornar-se uma árvore forte, capaz de oferecer sombra, frutos e, por sua vez, gerar novas sementes de excelência. Este é o ciclo sagrado, o eterno retorno da luz, que assegura a perenidade e o esplendor da Ordem. Honrar o Semeador de Homens é honrar o próprio futuro da Maçonaria.
Dedico este artigo ao meu bom e excelente padrinho, Ir.'. Paulo Roberto Dias de Oliveira, MI, 33º.

