A Arte da Memória e a Gênese da Maçonaria Especulativa: Um Reexame dos Estatutos de Schaw e das Old Charges

07/12/2025

Por Rui Samarcos Lora

Este artigo reexamina a transição da Maçonaria Operativa para a Especulativa através da lente da ars memoriae (arte da memória). Argumenta-se que a rígida dicotomia entre estas fases, sustentada pela historiografia tradicional, foi refutada a partir da década de 1980 por estudos que demonstraram a imbricação de elementos especulativos nas práticas operativas. A análise centra-se em dois pilares: os Estatutos de William Schaw (1598-99), que institucionalizaram estruturas com evidentes funções mnemotécnicas e ritualísticas, e os manuscritos das Old Charges (como o Lansdowne, c. 1560), que enquadravam o ofício numa narrativa lendária e num corpus de artes liberais que serviam como sistema de conhecimento e memória. A pesquisa da historiadora Frances A. Yates, que identificou na arte da memória um potencial elo explicativo para essa transição, fornece o arcabouço teórico. Conclui-se que as reformas de Schaw e o conteúdo das Old Charges criaram uma infraestrutura simbólica e organizacional que, fundamentada em técnicas mnemônicas, permitiu a absorção e adaptação de ideais especulativos pelos operativos, invalidando a noção de uma ruptura histórica nítida.

Introdução

O debate sobre as origens da Maçonaria especulativa moderna tem sido tradicionalmente pautado por uma narrativa de descontinuidade: uma fase "Operativa" puramente profissional e corporativa teria dado lugar, no século XVII/XVIII, a uma fase "Especulativa" filosófica e iniciática. No entanto, pesquisas historiográficas mais recentes, particularmente a partir da década de 1980, têm desconstruído essa visão binária, revelando a presença de elementos claramente especulativos no seio da maçonaria operativa. Este artigo propõe que a chave para compreender essa continuidade subjacente reside, em parte, no estudo da ars memoriae e de sua incorporação prática nos documentos e regulamentos fundacionais da Ordem.

O trabalho seminal da historiadora Frances A. Yates, A Arte da Memória (1966), não apenas traçou a evolução das técnicas mnemônicas desde a Antiguidade até o Renascimento, mas também sugeriu, de forma pioneira, que tais técnicas poderiam elucidar fenômenos obscuros na história das sociedades discretas, incluindo a transição maçônica. Seguindo essa pista, analisamos como a estruturação do conhecimento, a ritualização de práticas e a transmissão de uma tradição lendária – aspectos centrais tanto à arte da memória quanto à Maçonaria – foram codificados por William Schaw na Escócia do final do século XVI e já estavam presentes nos manuscritos ingleses das Old Charges.

1. Marco Teórico: A Ars Memoriae como Sistema Cultural

A arte da memória clássica, sistematizada na Rhetorica ad Herennium, baseava-se na associação de conceitos (res) a imagens (imagines) vívidas e na disposição ordenada destas em "lugares" (loci) mentais. Mais do que uma mera técnica de retórica, ela evoluiu na Idade Média e no Renascimento para um sistema complexo de organização do conhecimento e da cosmovisão, ligado à filosofia hermética, ao neoplatonismo e à busca por uma linguagem simbólica universal. Para Yates, esta arte não era um fenômeno marginal, mas uma "psicotecnologia" que moldou a forma de pensar e estruturar ideias em determinados círculos intelectuais.

No contexto das guildas medievais e renascentistas, a transmissão de segredos profissionais, histórias lendárias e preceitos morais em um ambiente predominantemente oral demandava métodos eficazes de memorização. A incorporação das Sete Artes Liberais – especialmente a Geometria, considerada a primeira e fundamental – nos documentos do ofício não era apenas um ornato erudito. Constituía um sistema de lugares intelectuais, um mapa cognitivo onde o conhecimento técnico (operativo) e o conhecimento filosófico (especulativo) encontravam seu fundamento comum. A memória, portanto, operava como o cimento entre a prática construtiva e sua dimensão simbólica.

2. William Schaw e a Codificação da Memória Estrutural (Escócia, 1598-99)

William Schaw (c. 1550-1602), Mestre de Obras do Rei Jaime VI da Escócia, é uma figura pivotante. Em 1598 e 1599, ele emitiu dois conjuntos de Estatutos que reorganizaram profundamente o ofício de pedreiro na Escócia.

Os Estatutos Schaw fizeram mais do que regulamentar um ofício; eles criaram uma estrutura institucional destinada a perdurar e a preservar uma identidade coletiva. Eles estabeleceram:

  1. Lojas territoriais com jurisdição definida e personalidade moral.

  2. Um sistema hierárquico de dois graus: Aprendiz (Entered Apprentice) e Companheiro de Ofício (Fellowcraft).

  3. A obrigatoriedade de manter um livro de atas (book of statutes) para registrar membros e decisões, materializando a memória da loja.

  4. Testes de proficiência para os mestres, baseados no "arte da memória" e na "teoria" do ofício.

  5. A exigência de que os mestres instruíssem seus aprendizes não apenas no manejo das ferramentas, mas também na "ciência" do ofício.

É neste último ponto que a referência explícita surge. O Segundo Estatuto (1599) determina que os mestres devem ser "testados na arte da memória e da ciência do ofício. Esta não é uma exigência prática para levantar um muro, mas uma cláusula especulativa. Ela indica que o conhecimento a ser retido ia além das medidas e cortes de pedra, abarcando provavelmente as lendas, as cargas morais e os princípios geométricos descritos nas Old Charges. Schaw, descrito como um homem com "formação liberal" e que viajou para "aperfeiçoamento de sua mente", institucionalizou um locus físico (a Loja) e um procedimento ritualizado (os testes) que funcionavam como um teatro da memória para o ofício, onde o conhecimento era depositado, preservado e transmitido.

3. As Old Charges como Manuais Mnemônicos da Tradição Operativa

Paralelamente à estruturação escocesa de Schaw, os manuscritos ingleses conhecidos como Old Charges ou "Antigos Deveres" desempenhavam uma função análoga. O manuscrito Lansdowne (c. 1560) é um exemplar paradigmático. Estes documentos, que eram lidos durante a recepção de novos membros, cumpriam uma função constitucional e mnemônica. Sua estrutura narrativa é um perfeito exercício de ars memoriae:

Elemento no Manuscrito Função como Locus/Imago da Memória Caráter
Invocação e Preâmbulo Estabelece o tom sagrado e a autoridade moral. Especulativo/Religioso
Lenda Histórica (de Lamech aos construtores do Templo) Fornece uma sequência narrativa ordenada (loci) de eventos e heróis fundadores (imagines). Mítico-Especulativo
Enquadramento nas Artes Liberais Apresenta a Geometria como mãe de todas as ciências, criando um sistema de classificação do conhecimento. Filosófico-Especulativo
Cargas e Deveres Morais Lista regras de conduta, lealdade e segredo, associando a ética ao ofício. Moral/Especulativo
Sanção e Juramento Fixa o compromisso através de um ato ritual solene. Ritualístico

O Lansdowne inicia afirmando que a Maçonaria é uma das sete artes liberais, fundamentadas na Geometria, e traça sua linhagem desde os patriarcas bíblicos até aos mestres medievais. Esta narrativa não era uma história no sentido moderno, mas um mito de origem estruturado para ser memorizado. Cada etapa funcionava como um locus onde se depositavam os valores do ofício. A recitação periódica deste mito durante cerimônias reforçava a identidade coletiva e inculcava uma visão de mundo que transcendia o ato físico de construir. Portanto, o pedreiro operativo que guardava essa "história" já era, em alguma medida, um portador de um conhecimento especulativo.

4. A Síntese e a Refutação da "Escola Autêntica" (Década de 1980)

A historiografia maçônica do século XIX e início do XX, por vezes chamada de "escola autêntica", tendia a privilegiar uma leitura literal dos documentos ingleses do século XVIII (como as Constituições de Anderson de 1723) e a enfatizar a ruptura com o passado operativo. Essa visão via a "aceitação" de membros não-operativos (gentlemen masons) na Inglaterra do século XVII como o motor único da especulação.

Essa interpretação foi radicalmente contestada a partir da publicação, em 1988, das obras do historiador escocês David Stevenson. Stevenson demonstrou que:

  • O modelo organizacional criado por Schaw (lojas territorialmente definidas, graus, registro de membros) foi o modelo estrutural direto adotado posteriormente pela maçonaria especulativa.

  • As lojas escocesas permaneceram majoritariamente operativas ao longo do século XVII, mas sua estrutura já era propícia à recepção ocasional de membros honoríficos com interesses intelectuais (como Sir Robert Moray, iniciado em 1641).

  • Portanto, a transição não foi uma substituição abrupta, mas um processo de transformação interna onde elementos especulativos já estavam presentes e foram gradualmente realçados.

A contribuição de Stevenson refutou a tese de uma origem puramente inglesa e da "aceitação" como fenômeno determinante. Ele mostrou que a infraestrutura para a especulação – ritual, graus, organização e, como argumentamos, um sistema implícito de memória e tradição – já estava codificada por Schaw nas lojas operativas escocesas. A arte da memória, exigida por Schaw e praticada através das Old Charges, foi o veículo que permitiu a essa infraestrutura suportar conteúdos cada vez mais filosóficos.

Conclusão

A investigação sobre a arte da memória ilumina um aspecto fundamental da gênese da Maçonaria especulativa. Os Estatutos de William Schaw e os manuscritos das Old Charges não foram meros regulamentos profissionais ou relatos históricos fantasiosos. Eles foram instrumentos ativos de construção de uma memória corporativa e de um sistema simbólico. Ao exigir o domínio da "arte da memória" e ao enquadrar o ofício numa narrativa lendária e num corpo de ciências liberais, eles criaram um espaço intelectual híbrido onde o trabalho manual e a reflexão filosófica podiam coexistir e se fertilizar.

A crítica de David Stevenson na década de 1980, ao demonstrar a precedência e a sofisticação do modelo escocês operativo-especulativo, corroborou a visão de que a dicotomia estrita entre as fases é um anacronismo. A Maçonaria especulativa do século XVIII não inventou seus símbolos e ritos ex nihilo; ela herdou, adaptou e amplificou um sistema mnemônico e iniciático já em gestação no seio das lojas operativas reformadas por Schaw e sustentado pela tradição das Old Charges. Compreender a ars memoriae como parte integrante desse processo é, portanto, essencial para desfazer o falso dilema entre operativo e especulativo e apreender a verdadeira natureza da transição maçônica como um fenômeno de continuidade e transformação cultural.

Referências Bibliográficas

  • DACHEZ, Roger. "Los Orígenes de la Masonería Especulativa – Parte III". O Ponto Dentro do Círculo. Tradução de Victor Guerra.

  • FILARDO, J. "Old Charges da Maçonaria Operativa I – Lansdowne MS.". Bibliot3ca.

  • PINHEIRO, Ivan Antônio. "Maçonaria e Memória: Um vínculo esquecido, elos perdidos". REHMLAC+, vol.16, n.2, 2024.

  • YATES, Frances A. A Arte da Memória. Tradução de Sérgio Medina Ribeiro. Campinas: Editora da Unicamp, 2007 (Ed. orig. 1966).

  • FILARDO, J. "William Schaw – O Inventor da Maçonaria Moderna". Bibliot3ca. (Tradução da Wikipédia).

  • "As Old Charges da Maçonaria e o que elas significam para nós". Freemason.pt.