A História da Maçonaria na África

A Maçonaria africana enfrenta desafios internos e externos, incluindo oposição religiosa e política, enquanto busca se adaptar ao contexto africano por meio da "afro-maçonaria" e da revisão de seus ritos, questionando sua relevância e autenticidade no continente.
A Maçonaria na África: Origens, Impacto e Trajetória Futura
Por Rui Samarcos Lora
Resumo
Este artigo analisa a trajetória histórica e sociopolítica da Maçonaria no continente africano, da sua implantação colonial no século XVIII à sua contemporaneidade complexa. Argumenta-se que a instituição, enquanto transplante europeu, evoluiu através de um processo dialético de imposição, adaptação e apropriação, gerando uma realidade maçónica africana distinta e multifacetada. A análise percorre três eixos principais: a disseminação geopolítica colonial e o seu legado segregacionista; o papel societário da Maçonaria, balizado entre a filantropia, o elitismo político e as tensões com valores comunitários africanos; e os desafios contemporâneos de identidade, incluindo a "afro-maçonaria", a instrumentalização política e a oposição religiosa. Conclui-se que o futuro da Ordem em África dependerá da sua capacidade de resolver a dicotomia entre os seus princípios universais declarados e as particularidades do contexto sociocultural e político do continente.
Palavras-chave: Maçonaria Africana, Colonialismo, Pós-colonialismo, Afro-maçonaria, Ubuntu, Sociabilidades Elitistas.
1. Introdução
A presença da Maçonaria na África constitui um fenômeno histórico de longa duração, iniciado no século XVIII, mas que permanece, no século XXI, como um campo de estudo com "baixa densidade" analítica face à complexidade do seu percurso e impacto (Badila, 2024, como citado em Makanisi, 2024). Herdeira direta da expansão colonial europeia, a instituição nunca foi um monólito no continente, mas sim um espelho das próprias contradições do colonialismo e das lutas pela independência e construção nacional que se lhe seguiram.
Este artigo propõe uma análise integrada da Maçonaria africana, examinando não apenas a sua cronologia de implantação, mas também os processos sociais de adaptação, os usos políticos a que foi submetida e os debates identitários que a animam na atualidade. Para além de mapear a sua geografia histórica, interroga-se sobre a natureza do seu papel: será a Loja maçônica um espaço de reflexão humanista e ação filantrópica, uma rede de poder e clientelismo político, ou uma instituição em busca de uma autenticidade africana através da releitura dos seus próprios ritos? Por meio de uma abordagem multidisciplinar que conjuga história, ciência política e antropologia, este trabalho pretende contribuir para uma compreensão mais matizada e robusta de uma realidade social frequentemente envolta em perceções estereotipadas e conspirativas.
2. Origens e Disseminação Histórica: Do Colonialismo à Era das Independências
A introdução da Maçonaria na África é indissociável da presença militar, comercial e administrativa europeia. Os primeiros registos apontam para a constituição de uma Loja na Ilha Bourbon (atual Reunião) em 1745, seguida por uma Loja em Port-Louis, na Ilha francesa (Maurícia), em 1765. No continente propriamente dito, as duas primeiras Lojas conhecidas foram a "Goede Hoop Lodge" n.º 18, instalada no Cabo em 1772 pela obediência holandesa, e a "Saint-Jacques des vrais amis rassemblés", fundada em Saint-Louis do Senegal em 1781 pela Grande Loja da França.
Durante mais de um século e meio, estas Lojas e as que se lhes seguiram foram compostas quase exclusivamente por europeus, funcionando como espaços de sociabilidade colonial em portos, capitais e centros comerciais. A segregação racial era a norma, criando uma dicotomia fundadora entre uma Maçonaria branca, metropolitana, e as populações autóctones. A África do Sul exemplifica este mosaico colonial, com a implantação inicial holandesa em 1772, seguida por Lojas inglesas (a partir de 1811), escocesas e irlandesas, que coexistiam e que, após um longo processo, se fundiram em 1961 na Grande Loja da África do Sul, embora distritos britânicos permaneçam ativos até hoje (The Square Magazine, s.d.). Na Argélia, a Maçonaria surgiu com a conquista francesa a partir de 1830, sendo a Loja "Bélisaire" de 1833 uma das pioneiras. Apesar da iniciação simbólica do mufti Sidi Hamed em 1839, a composição permaneceu majoritariamente europeia até ao êxodo pós-independência, que levou ao desaparecimento definitivo da Ordem no país na década de 1970. Em contraste, o Senegal, local da primeira Loja continental em 1781, tornou-se um polo vital da maçonaria francófona contemporânea, sediando estruturas pan-africanas como a Confederação das Potências Maçônicas Africanas e Malgaxes (CPMAM).
Esta realidade segregada só começaria a ser tensionada, de forma limitada e localizada, no século XX. O período pós-Segunda Guerra Mundial e as vagas de independência representaram um ponto de viragem crítico. Com a partida de muitos colonos, várias Lojas desapareceram, enquanto outras foram "africanizadas" com a admissão de novos membros negros. Este processo, contudo, nem sempre significou uma rutura com as matrizes europeias. Muitas das primeiras Grandes Lojas nacionais emergiram sob a égide ou com patente de obediências europeias, perpetuando uma relação de dependência e influência. Casos como o de Madagascar, onde a maçonaria francesa (GODF, GLDF, Droit Humain) se implantou a partir de 1900, gerando suspeitas culturais profundas (o maçom visto como "ladrão de coração" ou mpaka fo), ilustram como a independência política (1960) levou à criação de um rito nacional autóctone, o Grande Rito Malgache (1962), num movimento de afirmação identitária. De forma análoga, em Angola, após a interdição durante o período colonial português, o reavivamento maçônico só ocorreu em 2010, com a criação da Grande Loja de Angola sob os auspícios da Grande Loja Regular de Portugal. A Maçonaria africana pós-colonial carregava, assim, o duplo legado do colonialismo: as suas estruturas organizacionais e, em muitos casos, o estigma social da sua antiga exclusividade elitista e racial.
3. O Papel na Sociedade: Filantropia, Poder e o Diálogo com o Ubuntu
O impacto social da Maçonaria em África é paradoxal e multifacetado. Num plano formal, a Ordem projeta uma imagem baseada nos princípios universais de "amor fraternal, auxílio e verdade" e no trabalho filantrópico. Historicamente, isto traduziu-se, como noutras partes do globo, na fundação de escolas, hospitais e instituições de beneficência pelas Lojas, um legado tangível em várias nações.
Contudo, a análise revela camadas mais complexas. Em muitos contextos, especialmente na África Central e Ocidental francófona, a Maçonaria tornou-se profundamente imbricada com as esferas de poder político e económico. A partir dos anos 1970, com o impulso da Grande Loja Nacional Francesa (GLNF), foram consagradas Grandes Lojas nacionais frequentemente lideradas por figuras no ápice do Estado. Esta proximidade gerou uma perceção generalizada da Loja como um "clube" ou "rede de negócios", um espaço onde se negociam influências, contratos e posições, em detrimento do trabalho introspetivo e do debate de ideais. Joseph Badila, estudioso do fenómeno, critica esta deriva, afirmando que para muitos, "pertencer à Maçonaria é um estatuto prestigioso" a ser instrumentalizado, afastando a instituição do seu propósito humanista (Makanisi, 2024).
Este modelo contrasta agudamente com tradições africanas de solidariedade comunitária. A filosofia do Ubuntu ("Eu sou porque nós somos"), predominante no sul de África, ou práticas como o Harambee no Quénia (esforço coletivo) e os sistemas rotativos de crédito Ajo na Nigéria ou Susu na África Ocidental, baseiam-se em lógicas de reciprocidade horizontal e interdependência comunitária (Ghermay, 2021; GivingTuesday, 2023). A filantropia maçónica, por outro lado, é frequentemente estruturada de forma vertical e institucional, emanando de uma organização hierárquica para a comunidade. Este contraste, por vezes não resolvido, coloca a Maçonaria numa posição ambígua: promove o auxílio, mas pode fazê-lo a partir de um espaço percecionado como elitista e fechado, distante dos mecanismos orgânicos de apoio mútuo da sociedade. Enquanto a solidariedade tradicional é um ato integrado na identidade e no quotidiano social, a ação filantrópica maçónica pode ser vista como uma caridade externa e até com segundas intenções, o que alimenta a desconfiança popular e as narrativas conspirativas.
4. Desafios, Controvérsias e a Emergência de uma "Afro-Maçonaria"
A Maçonaria africana enfrenta um conjunto intrincado de desafios que testam a sua identidade e relevância futura, oscilando entre a oposição externa e as crises internas.
A oposição religiosa e política constitui um obstáculo estrutural. Setores conservadores das principais religiões abraâmicas frequentemente acusam a Maçonaria de paganismo, ocultismo ou incompatibilidade doutrinária. Esta oposição materializou-se na proibição absoluta da prática em países como a Argélia e na constante suspeita em outros, onde líderes religiosos condenam publicamente a instituição. Paralelamente, regimes autoritários de diversas colorações ideológicas viram, em vários momentos históricos, a Maçonaria como uma potencial ameaça de organização paralela e espaço de dissidência, sujeitando-a a vigilância e restrições.
Em resposta a parte desta marginalização e na busca por uma legitimidade cultural mais profunda, assiste-se no século XXI à emergência do fenômeno da "afro-maçonaria". Esta tendência manifesta-se através de duas vias principais. A primeira é a expansão das Lojas de Prince Hall, uma tradição maçônica negra norte-americana com origens no século XVIII, fundada por Prince Hall (Sesay Jr., 2024). Esta linhagem, nascida da segregação racial e da luta por direitos, oferece um histórico de resistência e empowerment que ressoa fortemente com as experiências africanas, propondo uma via maçónica distintamente negra e diaspórica. A segunda via é um movimento intelectual e ritualístico que busca revisitar os ritos maçónicos tradicionais à luz de símbolos, filosofias e cosmologias africanas. Trata-se de um projeto de endogenização cultural que pretende enraizar a prática iniciática no solo espiritual e intelectual do continente, superando a sua perceção como um mero artefacto de importação colonial.
Talvez o desafio mais insidioso e debilitante seja interno, aquilo que Badila identifica como a dificuldade de alguns maçons em "assear na cidade os valores" professados na Loja. A crítica centra-se no que se poderia chamar de cordonite – uma obsessão pelos títulos, cordões, insígnias e honrarias dentro da hierarquia maçónica. Quando a busca por status, influência e conexões privilegiadas dentro e fora da Loja sobrepõe-se ao trabalho interior de aperfeiçoamento ético e ao compromisso desinteressado com o bem comum, a instituição esvazia-se do seu conteúdo filosófico. Esta deriva para um clubismo social corrobora as críticas externas mais cáusticas e mina a credibilidade da Ordem perante a sociedade, transformando-a no exato oposto do que declara ser.
5. Conclusão: Trajetórias de um Futuro Incerto
A Maçonaria em África é, portanto, um organismo histórico complexo e em contínua metamorfose. Nascida como apêndice do poder colonial, sobreviveu às independências e procurou, com sucesso variável, enraizar-se em solos sociais e culturais radicalmente diferentes dos seus de origem. A sua história é a de uma instituição universalista confrontada com particularismos locais poderosos: as tradições comunitárias horizontais, como o Ubuntu; as estruturas políticas frequentemente cleptocráticas do pós-colonialismo; e os fervores religiosos conservadores.
O seu futuro dependerá criticamente da sua capacidade de navegar e resolver tensões fundamentais. Conseguirá transcender definitivamente a sua herança de elitismo e segregação para se tornar uma força genuinamente inclusiva e reflexiva, capaz de atrair membros por mérito e ideais, e não por cálculo de oportunidade? Será capaz de harmonizar os seus princípios universais com expressões culturais africanas autênticas, dando corpo sustentado e sério ao projeto de uma "afro-maçonaria" que vá além do folclore? E, sobretudo, poderá a instituição resistir à corrosão dos seus próprios valores fundamentais pela "cordonite" e pela instrumentalização política, reafirmando a primazia do trabalho interior sobre a exibição de status?
As respostas a estas questões não são únicas. Tal como o próprio continente, a Maçonaria africana é plural e polifónica. O seu caminho será necessariamente diversificado, variando conforme a solidez das instituições democráticas nacionais, o vigor das suas sociedades civis e, em última instância, a integridade ética dos seus próprios membros. O que está em jogo é a possibilidade de a Ordem, neste caleidoscópio que é a África contemporânea, cumprir o seu próprio e elevado ideário: ser um espaço de aperfeiçoamento individual que contribua, de forma ética, desinteressada e humilde, para a edificação do bem comum e para o aprofundamento do humanismo no seio das sociedades onde se insere.
Referências Bibliográficas
Badila, J. (2024). La franc-maçonnerie à l'épreuve des particularismes en Afrique. Éditions Detrad. (Citado em Makanisi, 2024).
Ghermay, S. (2021, 14 de junho). Collaborative philanthropy is rooted in African communal practice. Let's reclaim it. Community Centric Fundraising. https://communitycentricfundraising.org/2021/06/14/collaborative-philanthropy-is-rooted-in-african-communal-practice-lets-reclaim-it/
GivingTuesday. (2023, 14 de março). The Impact of Culture on Generosity in Africa. https://www.givingtuesday.org/blog/the-impact-of-culture-on-generosity-in-africa/
Makanisi. (2024). « La franc-maçonnerie à l'épreuve des particularismes en Afrique ». Entrevista com Joseph Badila. https://www.makanisi.org/la-franc-maconnerie-a-lepreuve-des-particularismes-en-afrique/
Sesay Jr., C. M. (2024, 21 de junho). Prince Hall: a figura paterna maçônica da América. California Freemason. https://californiafreemason.org/pt/2024/06/21/prince-hall-father-figure/
Shriners International. (2023, março). Os Shriners chegaram à África do Sul. https://www.shrinersinternational.org/pt-br/news-and-events/news/2023/03/south-african-shrine-club
The Square Magazine. (s.d.). Brotherhood on the Continent: Freemasonry's Journey in Africa. https://www.thesquaremagazine.com/mag/article/045-brotherhood-on-the-continent-freemasonrys-journey-in-africa/

